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O IMPARÁVEL DEVIR DAS VANGUARDAS E OUTROS ISMOS
TRABALHO
REALIZADO PARA A CADEIRA DE
MARIA PAULA ADRIÃO MONTEZ
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As manifestações artísticas a que se convencionou chamar Arte Moderna irromperam no contexto espacio-temporal que medeia as duas grandes guerras. O mal de vivre que apoquentara o ser pensante do final do século XIX voltava então a intensificar-se. O que efemeramente parecera ser a euforia da Belle Époque, viria a transformar-se numa náusea existencial. O intelectual não podia ficar indiferente. Sem quaisquer interesses em participar dos benefícios financeiros que geram as guerras e as violações dos direitos humanos, o artista não poderia permanecer indiferente. Através dos meios de expressão permitidos aos artistas a sua voz humana urgiria fazer-se ouvir. Esta é a sua razão essencial. O Homem do século XX experimentou a inquietação. As suas formas de ver e exprimir o mundo obedeceram a um impulso interior que os levou à experimentação capaz de exprimir o inexprimível. Movimentações, hoje ditas de vanguarda, porque o foram na realidade, quer pela procura do novo, quer pela incompreensão inicial a que as massas as submeteram - e que as vanguardas apreciaram -, multiplicaram-se em ismos. Os artistas juntaram-se na procura de um estilo individual que animasse o espírito de grupo, não se deixando estagnar e evoluindo num fruir criativo. As velhas formas vigentes estavam caducas e ultrapassadas, mostrando-se falaciosas face à realidade. Novos meios expressivos se impunham ao artista de todas as artes, procurando quebrar com uma ordem já de si fragmentada pelos grandes conflitos mundiais. O génio criador estava vivo e explodiu realizando-se na arte, uma arte virada para o futuro numa recusa de pactuar com tudo o que insistisse em permanecer confortavelmente instituído. O sentimento artístico leva o ser dilacerado a uma ânsia de recomeço, um chamado jardim utópico da infância. O ser já não se pensa uno, sabe-se diverso. A realidade complexa, múltipla, leva-o a repensar-se: também ele é um ser fragmentado, múltiplo, que se debate com a sua consciência e experimenta o tédio e a angústia. Cada homem está só e não pode aproveitar como feita e concluída a experiência anterior. Cada homem tem de criar de novo o mundo. Nas artes, e principalmente no caso da Literatura e das Artes Plásticas, foi este o sentimento que animou a criação artística capaz de gerar a inovação:
Antes da guerra, o diapasão era
dramático. Época cheia de problemas, de pressentimentos, de interpretações
várias e contradições, em que uma harmonização parecia menos oportuna – luta
de tons, equilíbrio perdido, inesperados rufos de tambores, aspirações
aparentemente sem rumo, ímpeto despedaçado... E a partir de tudo isto
construir um todo que era o quadro. Kandinsky exprime esse mal estar e segue o discurso procurando uma solução: A pintura procura «novas formas» e muito poucos sabem ainda que isto foi uma procura inconsciente de um novo conteúdo. Todas as épocas estão limitadas por uma medida de liberdade artística própria e nem a força mais genial ousa saltar por cima dos limites dessa liberdade. Mas essa medida tem que ser e é sempre esgotada. Que as forças rebeldes se revoltem como entenderem por mais que essa liberdade resista. É esse o objectivo e a função das vanguardas, conceito que se quer dinâmico pois senão perderá todo o sentido. Pois o que é a vanguarda senão um fluir e um fruir (in)constantes que procura manter a sua atitude dialéctica sempre em confronto com um mundo mutável e caótico? A ideia que sustenta o conceito que hoje em dia se possa ter de vanguarda não deve, em sua homenagem, tornar-se um preconceito. Isso seria trair o próprio espírito das vanguardas. Para Eugène Ionesco, as vanguardas não passam de correntes efémeras que salutarmente se sucedem na procura do sempre novo – esse é o segredo da sua vitalidade -, em oposição ao que se encontra instituído, estagnado: Surgem sempre, felizmente, ímpetos renovadores. A literatura não é senão a expressão da renovação contínua das novas linguagens. A literatura pode ser o que se quiser, menos algo estático e morto... E isto sempre se passou, pois é esse o motor do devir da própria literatura, em todas as épocas, em todos os países e em todas as civilizações, constitui uma tradição estética que tem dado lugar a formas poéticas e géneros literários que são hoje reconhecidos como clássicos; mas para que isso sucedesse foi necessário que se manifestasse essa oposição entre os defensores do antigo e da tradição e os adeptos da inovação. E. M. de Melo e Castro, teorizando a essência das vanguardas irá defini-las mediante os parâmetros da novidade, marginalidade e liberdade que as orientam, equacionando o projecto das vanguardas da seguinte forma: O projecto é portanto o seguinte: através do novo, contestar aquilo que se nos apresenta como fossilizado, velho, caduco, esteriotipado; através da marginalização, combater o poder oficial instituído; através da liberdade, combater a opressão e a exploração. (...) O discurso da vanguarda será portanto livre, novo e marginal. (...) Mas estes valores só têm razão de ser projectados num combate com a realidade, numa praxis, portanto. Esse combate é também a fonte das grandes atracções e repulsões contraditórias que se deram ao longo da história. Em Portugal, como no resto da Europa, pintores e poetas tenderão a considerar as suas artes como manifestações totais, não diferenciadas, unindo-se em movimentos na procura comum de novas formas no devir das suas artes. As vanguardas tendem para o visualismo e as inquietações de ambos – pintores e poetas – revelam-se comuns. Curiosamente através das palavras de Kandinsky torna-se mais claro o modo como esse sentimento cresceu e se tornou obsessivo, podendo-se identificar com o experimentado por personalidades como a de Fernando Pessoa ou a que Almada Negreiros traduz manifestamente na sua Cena do Ódio, um sentimento expresso de um modo geral, pela própria natureza das vanguardas: Desde 1914 que cresceu em mim o desejo de uma «serenidade fria» - nada de hirto, mas de frio, muito frio, às vezes tão frio como o gelo – num invólcro gelado, «recheios» a arder em brasa. Um disfarce... Debaixo do gelo corre às vezes água quente. A Natureza trabalha por meio de contrastes. – O meu desejo hoje é ir «mais longe! Mais longe». Polifonia, como diz o músico. – União interior pela desunião exterior, coesão através da dissolução e da dilaceração. No desassossego serenidade, na serenidade inquietação. O «processo» do quadro não deve desenrolar-se na superfície da tela, mas «algures» no espaço «ilusório». Da mentira (Abstracção!) deve falar a verdade. A verdade sã, que se chama «Eu estou aqui». Fernando Pessoa irá elevar essa expressão ao máximo expoente assumindo esteticamente a sua multiplicidade e desassossego e indo o mais longe que lhe foi possível na procura de novas formas de expressão, criando teorias estéticas como o Sensacionismo. seu poema A Passagem das Horas, é uma ode sensacionista que Álvaro de Campos subscreve e dedica a Almada Negreiros; nela, Fernando Pessoa, exprime poeticamente a essência do Sensacionismo logo nos primeiros versos:
Sentir tudo
de todas as maneiras, Ao longo do poema, Pessoa exprime o seu eu múltiplo, o seu desejo total de experimentar e abarcar a realidade em todas as suas facetas para melhor poder exprimi-la. A própria forma do poema é totalmente livre, fruindo ao sabor da sensação do momento, não se deixando espartilhar por qualquer norma pré-estabelecida, rompendo com as formas do passado ao estilo próprio de um Álvaro de Campos futurista, numa desenfreada
Cavalgada
desmantelada por cima de todos os cismos, Esta ode remete em alguns aspectos para o tom de A Cena do Ódio, de Almada Negreiros, o que não é de estranhar, considerando que o próprio Fernando Pessoa considerava Almada e Álvaro de Campos os mais próximos do mais moderno estilo de sentir e escrever. Por seu lado, também A Cena do Ódio é dedicada a Álvaro de Campos e Almada nela se subscreve como poeta sensacionista e Narciso do Egipto. A Cena do Ódio é tido como um dos principais textos futuristas. O seu carácter vanguardista de expressão de um eu múltiplo e sensacionista, livre de todas as formas, arremetendo-se espontâneo e irado contra os podres de uma sociedade e de uma cultura portuguesa que lhe desperta vergonha, é um texto de intervenção, denúncia e crítica social, que remete para outros textos vindouros que irrompem num jorro afirmativo da sua recusa em pactuar com a falsidade de um mundo decadente, como é o caso do F.M.I., de José Mário Branco. Cantiga de escárnio e mal-dizer de um tempo moderno, (A Cena do Ódio) confunde-se com o futurismo que parece exultar no seu exagerado ruído. Mas até o futurismo, nela, acaba por soçobrar na mesma onda de desmoronamento e desprezo proféticos. A estrutura e os elementos formais são correspondentes ao conteúdo. Desde a magia tumultuosa das palavras e maiúsculas divinizando absurdamente uma negativa do eu, até à brutalidade da espasmódica invectiva de ódio. Os versos parecem desordenados e sem nexo, a expressão exagera efeitos grotescos, através de imagens cruéis, e o vocabulário não recua perante nenhum epíteto, perante nenhum tabu. Inteira, «A Cena do Ódio» é uma criação espantosa de fôlego, energia e organização. (Maria Aliete Galhoz) Mais tarde, postumamente, o Almada Negreiros-pintor, irá voltar a prestar o seu tributo a Fernando Pessoa, já longe da breve aventura de Orpheu. Inicialmente, ao quadro que hoje é conhecido por Retrato de Fernando Pessoa, Almada terá nomeado de Lendo Orpheu, remetendo assim para a importância que para si o tempo de Orpheu terá sempre tido. Colocando o Orpheu 2 junto da figura de um Pessoa-ortónimo mais austero e intelectualizado, Almada terá talvez desejado transpor para um mesmo plano a necessidade de irreverência simbolizada pela revista e o grande inovador que será sempre Pessoa, transmitindo assim ambos às gerações vindouras. O mesmo ensejo terá provavelmente sentido Mário Viegas, que integrou nas suas Palavras Ditas, A Cena do Ódio. É sabido que no momento adequado não foi possível publicar o número 3 de Orpheu; nele seria incluída A Cena do Ódio. E Almada nunca pôde gritá-la para um público que a merecia ter sofrido. Por isso, na liberdade que o devir das artes permite, Mário Viegas encenou o texto da forma mais fiel e criativa que lhe foi possível imaginar. Chamou-lhe ele a intenção de fazer uma pequena graça, uma pequena provocação poético-teatral. E já que o texto seria dedicado a Fernando Pessoa por Almada, Mário Viegas irá partir da encenação do quadro Lendo Orpheu, fazendo a leitura do texto como se uma leitura do próprio Pessoa se tratasse, como se a sua imaginação pudesse ver como mestre Almada teria ele próprio encenado a bofetada dadaísta que o texto poderia ter dado no gosto público, caso tivesse chegado às suas últimas consequências. O texto é dirigido a um tu, mero espectador incapaz de compreender toda a tragédia humana que o texto exprime, um destinatário que se instala confortavelmente na sua poltrona à espera do momento do espectáculo.
Directamente das margens do Nilo,
o texto é expressamente dedicado a Álvaro de Campos e é dito ter sido
escrito nos três dias e três noites que durou a revolução de 14 de Maio
de 1915. A vida é tão curta e o futuro está tão perto.
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BIBLIOGRAFIA
AAVV, Orpheu 3 (Prep. Do texto,
introdução e cronologia de Arnaldo Saraiva), Ed. Ática, Lx., 1984 ARTIGOS, PÁGINAS WEB E AUDIOVISUAIS
Kaminnski,
Rosane, “Arte e Exclusão”, Agosto 2000, art., pg. Web(?) |
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