A Cena do Ódio

Almada Negreiros

Ergo-Me Pederasta apupado d'imbecis,

divinizo-Me Meretriz, ex-libris do Peccado,

e odeio tudo o que não Me é por Me rirem o Eu!

satanizo-me tara na vara de Moysés!

O castigo das serpentes é-me riso nos dentes,

Inferno a arder o Meu cantar!

Sou vermelho-Niagára dos sexos escancarados nos chicotes dos cossacos!

Sou Pa-demonio-Trifauce enfermiço de Gula!

Sou genio de Zarathustra em Taças de Maré-Alta!

Sou Raiva de Medusa em Damnação do Sol!

Ladram-me a Vida por vivê-La

e só me deram Uma!

Hão-de lati-La por sina!

agora quero vivê-La!

Hei-de Poeta cantá-La em gala sonora e dina!

Hei-de Glória desannuviá-la!

Hei-de Guindaste icá-la esfinge

da Valla pedestre onde Me querem rir!

Hei-de trovão-clarim levá-La Luz

ás Almas-Noites do Jardim das Lagrymas!

Hei-de bombo rufá-La pompa de Pompeia

nos Funeraes de Mim!

Hei-de Alfange-mahoma

cantar Sodoma na Voz de Nero!

Hei-de ser Fuas sem Virgem do Milagre,

hei-de ser galope opiado e doido, opiado e doido...,

hei-de Attila, hei-de Nero, hei-de Eu,

cantar Attila, cantar Nero, cantar Eu!

Sou Narciso do Meu Ódio!

— O Meu Ódio é Lanterna de Diogenes,

é cegueira de Diogenes,

é cegueira da Lanterna!

(O Meu Ódio tem thronos de Herodes,

hysterismos de Cleopatra, perversões de Catharina!)

O Meu Ódio é Diluvio Universal sem Arcas de Noé: só Diluvio Universal!

e mais universal ainda:

sempre a crescer, sempre a subir...,

até apagar o Sol!

 

Sou throno do Abandono, mal-fadado,

nas iras dos barbaros, meus Avós.

Oiço ainda da Berlinda d'Eu ser sina

gemidos vencidos de fracos,

ruidos famintos de saque,

ais distantes de Maldição eterna em Voz antiga!

Sou ruinas razas, innocentes

como as azas de rapinas afogadas.

Sou reliquias de martyres impotentes

sequestrados em antros do Vicio.

Sou clausura de Sancta professa,

Mãe exilada do Mal,

Hostia d'Angustia no Claustyro,

freira demente e donzella,

virtude sosinha da cella

em penitencia de sexo!

Sou rasto espesinhado d'Invasores

que cruzaram o meu sangue, desvirgando-o.

Sou a raiva atavica dos Tavoras,

o sangue bastardo de Nero,

o ódio do ultimo instante

do condenado innocente!

A podenga do Limbo mordeu raivosa

as pernas nuas da minh'Alma sem baptismo...,

Ah! que eu sinto, claramente, que nasci

de uma praga de ciumes!

Eu sou as sete pragas sobre o Nylo

e a Alma dos Borgias a penar!

Tu, que te dizes Homem!

Tu, que alfaiátas em modas

e fazes cartazes dos fatos que vestes

p'ra que se não vejam as nodoas de baixo!

Tu, qu'inventaste as Sciencias as Philosophias,

as Politicas, as Artes e as Leis,

e outros quebra-cabeças de sala

e outros dramas de grande espectaculo...

Tu, que aperfeiçoas a arte de matar...

Tu que descobriste o acbo da Boa-Esperança

e o Caminho-maritimo da India

e as duas Grandes Americas.

e que levaste a chatice a estas terras.

e que trouxeste de lá mais Chatos pr'aqui

e qu'indapor cima cantaste estes Feitos...

Tu. qu'inventaste a chatice e o balão,

e que farto de te chateares no chão

te foste chatear no ar,

e qu'inda foste inventar submarinos

 

pr'a te chatear tambem por debaixo d'agua...

Tu, que tens a mania das Invenções e das Descobertas

e que nunca descobriste que eras bruto,

e que nunca investaste a maneira de o não seres...

Tu consegues ser cada vez mais bêsta

e a este progresso chamas Civilização!

Vae vivendo a bestialidade na Noite dos meus olhos,

vae inchando a tua ambição-toiro

'té que a barriga te rebente rã.

Serei Victoria de um dia

— Hegemonia de Mim!

e tu nem derrota, nem morto, nem nada.

O seculo-dos-Seculos virá um dia

e a burguezia será escravatura

se fôr capaz de sahir da cavalgadura!

Hei-de entretanto, gastar a garganta

a insultar-te, ó bêsta!

hei-de morder-te a ponta do rabo

e pôr-te as mãos no chão, no seu lugar!

Ahi! Saltimbanco-bando de bandoleiros nefastos!

Quadrilheiros contrabandistas da Imbecilidade!

Ahi! Espelho-aleijão do Sentimento,

macaco-intruja do Alma-realejo!

Ahi! maquerelle da Ignorancia!

Silenceur do Genio-tempestade!

Spleen da Indigestão!

Ahi! meia-tigella, travão das Ascensões!

Ahi! povo judeu dos Christos mais que Christo!

Ó burguezia! ó ideal com i pequeno!

Ó ideal ricócó dos Mendes e Possidonios!

Ó cofre d'indigentes

cuja personalidade é a moral de todos!

Ó geral, da mediocridade!

Ó claque ignobil do vulgar, protagonista do normal!

Ó catitismo das lindezas d'estalo!

Ahi! lucro facil,

cartilha-cabotina dos limitados, dos restringidos!

Ahi! dique-impecilho do Canal da Luz!

Ó coito d'impotentes

a corar ao sol no riacho da Estupidez!

Ahi! Zero-barometro da Convicção!

bitola dos chega, dos basta, dos não quero mais!

Ahi! plebeismo aristoctaisado no preço do panamá!

erudição de calça de xadrez!

competencia de relogio d'oiro

e corrente com suores do Brazil,

e berloques de cornos de buffalo!

E eu vivo aqui desterrado e Job

da Vida-gemea d'Eu ser feliz!

E eu vivo aqui sepultado vivo

na Verdade de nunca ser Eu!

Sou apenas o Mendigo de Mim-Proprio,

orphão da Virgem do meu sentir.

E como queres que eu faça fortuna

se Deus, por escarneo, me deu intelligencia,

e não tenho, sequer, irmãs bonitas

nem uma mãe que se venda para mim?

(Pezam kilos no Meu querer

as salas-de-espera de Mim.

Tu chegas sempre primeiro...

Eu volto sempre amanhã...

Agora vou esperar que morras.

Mas tu és tantos que não morres...

Vou deixar d'esp'rar que morras

— Vou deixar d'esp'rar por mim!)

Ah! que eu sinto, claramente, que nasci

de uma praga de ciumes!

Eu sou as sete prags sobre o Nylo

e a alma dos Borgias a penar!

E tu, tambem, vieille-roche, castello medieval

fechado por dentro das tuas ruinas!

Fiel epitaphio das chronicas aduladoras!

E tu tambem, ó sangue azul antigo

que já nasceste co'a biographia feita!

Ó pagem loiro das cortezias-avozinhas!

Ó pergaminho amarello-mumia

das grandes galas brancas das paradas

e das victorias dos torneios-loterias

com donzellas-glorias!

Ó resto de sceptros, fumo de cinzas!

Ó lavas frias do vulcão pyrotechnico

com chuvas d'oiros e cabeleiras prateadas!

Ó estilhaços heraldicos de vitraes

despegados lentamente sobre o tanque do silencio!

Ó cedro secular

debruçado no muro da Quinta sobre a estrada

a estorvar o caminho da Mala-posta!

E vós tambem, ó gentes de Pensamento

ó Personalidade, ó Homem!

artistas de todas as partes, christãos sem patria, Christos vencidos por serem só Um!

E vós, ó Genios sem Voz!

Ó alem-infinito sem regresso, sem nostalgias,

Espectadores gratuitos do Drama-Immenso de Vós-Mesmos!

prophetas clandestinos

do naufragio de Vossos Destinos!

E vós tambem, theoricos-irmãos-gemeos

do meu sentir internacional!

Ó escravos da Independencia!

Vós que não tendes premios

por se ter passado a vez de os ganhardes,

e famintos e covardes

entreteis a fome em revoltas do Mau-genio

na bohemia de bomba e da polvora!

E tu tambem, ó Belleza Canalha

co'a sensibilidade manchada de vinho!

Ó lyrio bravo da Floresta-Ardida

á meia-porta da tua Miseria!

Ó Fado da Má-Sina

com illustrações a giz

e letra da maldição!

Ó féra vadia das viellas açaimada na Lei!

Ó chale e lenço a resguardar a tysica!

Ó franzinas do fanico

c'o a syphilis ao collo por essas esquinas!

Ó nu d'aluguer

na meia-luz dos cortinados corridos!

Ó oratorio da meretriz a mendigar gorgetas

p'r'á sua Senhora da Boa-Sorte!

Ó gentes tatuadas do calão!

Ó carro vendado da penitenciaria!

E tu tambem, ó Humilde, ó simples!

enjaulados na vossa ignorancia!

Ó pé descalço a callejar o cerebro!

Ó musculos da saude de ter fechada a casa de pensar!

Ó alguidar de assorda fria

na ceia-fadiga de dôr-candeia!

Ó esteiras duras p'ra dormir e fazer filhos!

Ó carretas da Voz do Operario

com gente de preto a pé e philarmonica atraz!

Ó campas razas engrinaldadas,

com chapões de ferro e balões de vidro!

Ó bota rôta de mendigo abandonada no pó do caminho!

Ó metamorphose-selvagem das feras da cidade!

Ó geração de bons ladrões crucificados da estupidez!

Ó sanfona-saloia do fandango dos campinos!

Ó pampilho das Lezirias innundadas de Cidade!

Ó trouxa d'aba largada minha lavadeira,

ó rodopio azul da saia azul de Loures!

E vós varinas que sabeis a sal

E que trazeis o Mar no vosso avental,

as Naus da Phenicia ainda não voltaram?

E vós tambem, ó môcas da Provincia

que trazeis o verde dos campos

no vermelho das faces pintadas!

E tu tambem, ó mau gosto

co'a saia de baixo a vêr-se

e a falta d'educação!

Ó oiro de pechisbeque (esperteza de ciganos)

a luzir no Vermelho verdadeiro da blusa de chita!

Ó tedio do domingo com botas novas

e musica n'Avenida!

Ó sancta Virgindade

e garantir a falta illustrado

com apparições de beijos ao lado!

E vós ó gentes que tendes patrões,

autómatos do dono a funccionar barato!

Ó creadas novas chegadas de fóra p'ra todo o serviço!

Ó costureiras mirradas,

emmaranhadas na vossa dôr!

Ó reles caixeiros, pederastas do balcão,

a quem o patrão exige modos lisongeiros

e maneiras agradáveis p´rós freguezes!

 

Ó Arsenal-fadista de ganga azul e côco socialista!

Ó sahidas pôr-do-sol das Fábricas d'Agonia!

E vós tamhem, ó toda a gente,

que todos tendes patrões!

E vós tambem, nojentos da politica

que exploraes eleitos o Patriotismo!

Maquereaux da Patria que vos pariu ingenuos

e vos amortalha infames!

 

E vôs tambem, pindericos jornalistas

que fazeis cócegas e outras coisas

á opinião publica!

 

E tu tambem roberto fardado:

Futrica-te espantalho engalonado,

apeia-te das patas de barro,

larga a espada de matar

e põe o penacho no rabo!

Ralha-te, mercenario, asceta da Crueldade!

Espuma-te no chumbo da tua valentia!

Agoniza-te, Rilhafolles armado!

Desuniversidadiza-te da douturança da chacina,

da sciencia da matança!

Groom fardado da Nêgra,

pária da Velha!

Encaveira-te nas espóras luzidias de sêres fera!

Despe-te da farda,

desenfia-te da Impostura, e põe-te nu, ao léu

que ficas desempregado!

Acouraça-te de senso,

vomita de vez o morticinio,

enche o pote de raciocinio,

aprende a lêr corações,

que ha muito mais que fazer

do que fazer revoluções!

Ruina com tuas proprias peças-colossos

as tuas proprias peças colossaes,

que de 42 a 1 é meio-caminho andado!

Rebusca no seres selvagem,

no teu cofre do exterminio

o teu calibre maximo!

Põe de parte a guilhotina,

dá ferias ao garrote!

Não dês lingua aos teus canhões,

nem echos ás pistolas.

nem vozes ás espingardas!

— São coisas fóra da moda!

Põe-te a fazer uma bomba

que seja uma bomba tamanha

que tenha dez raios da Terra.

Põe-lhe dentro a Europa inteira,

os dois polos e as Americas,

a Palestina, a Grecia, o mappa

e, por favôr, Portugal!

Acaba de vez com este planeta,

faze-te Deus do Mundo em dar-lhe fim!

(Ha tanta coisa que fazer, Meu Deus!

e esta gente distrahida em guerra!)

 

Eu creio na transmigração das almas

por isto de Eu viver aqui em Portugal.

mas eu não me lembra do mal que fiz

durante o Meu avatar de burguez.

Oh! se eu soubesse que o Inferno

não era como os padres m'o diziam -

uma fornalha de nunca se morrer -,

mas sim um Jardim da Europa

á beira-mar plantado...

eu teria tido certamente mais juízo,

teria sido até o martyr São Sebastião!

E indaha quem faça propaganda d'isto:

a patria onde Camões morreu de fome

e onde todos enchem a barriga de Camões!

Se ao menos isto tudo se passasse

numa terra de mulheres bonitas!

Mas as mulheres portuguezas

são a minha impotencia!

 

E tu, meu rotundoe pançudo-sanguessugo,

meu desacreditado burguez apinócado

da rua dos bacalhoeiros do meu ódio

co'a Felicidadeem casa a servir aos dias!

Tu tens em teu favôr a glória facil

igual á de outros tantos teus pedaços

que andam desajunctados neste Mundo,

desde ainvenção do mau cheíro,

a estorvar o asseio geral.

Quanto mais penso em ti, mais tenho Fé e creio

que Deus perdeu de vista o Adão de Barro

e com pena fez outro de bósta de boi

por lhe faltar o barro e a inspiração!

E emquanto este Adão dormia

os ratos roeram-lhe os miólos.

e das caganitas nasceu a Eva burgueza!

 

Tu arreganhas os dentes quando te fallam d'Orpheu

e pões-te a rir, como os pretos, sem saber porquê.

E chamas-me doido a Mim

que sei e sinto o que Eu escrevi!

Tu que dizes que não percebes,

rias-te-has de não perceberes?

 

Olha Hugo! Olha zola, cervantes e Camões,

e outros que não são nada por te cantarem a ti!

olha Nietzsche! Wilde! Olha Rimbaud e Dowson!

Cesario, anthero e outros tantos mundos!

Beethoven, Wagner e outros tantos génios

que não fizeram nada,

que deixaram este mundo tal qual!

Olha os grandes o que são estragados por ti!

O teu máximo é ser besta e ter bigodes.

A questão é estar installado.

Se te livras de burgez e sobes a talento,a genio,

a sêres alguém,

o Bem que tu fizeres é um décimo de sêres féra!

E de que serve o livro e a sciencia

se a experiencia da vida

é que faz comprehender a sciencia e o livro?

Antes não ter sciencias!

Antes não ter livros!

Antes não ter Vida!

 

Eu queria cuspir-te a cara e os bigodes,

quando te vejo apalermado p'las esquinas

a dizeres piadas ás meninas,

e a gpstares de mulheres que não prestam

e a fazer-lhes a côrte

e a apalpar-lhes o rabo,

esse tão cantado belo cú

que creio ser meçhor o teu ideal

que a propria mulher do cú grande!

E casas-te com Ella,

porque o teu ideal vem pegado a Ella,

e agora á brocha limpas a calva em pinga

á cóca de cunhas p'r'ó Cunha examinador

do teu decimo nono filho

dezenove vezes parvo!

(É o caso mais exemplar de constancia e fidelidade

a tua historia sexual co'a Felisberta,

desde o teu primogenito tanso

'té ao decimo nonoi idiota.)

'Té no matrimonio te maldigo, infame cobridor!

Especie de verme das lamas dos pantanos

que, de tanto se encharcar em gósos,

o seu corpo se atrofiou

e o sexo elephantisado foi todo o seu corpo!

 

Em toda a parte tu és o admirador

e em toda a parte a tua ignorancia

tem a cumplicidade da incompetencia

dos que te fallam 'té dos lugares sagrados.

Sim! eu sei que tu és juiz

e qu'inda hontem prometteste á tua amante,

despedindo-a n'um beijo de impotente,

a condemnação dos réus que tivesses

se Ella faltasse á matinée da Boa-Hora!

Pulha! E és tu que do pulpito

d'essa barriga d'Agua da Curia

dás a ensinança de trote

aos teus dezenove filhos?!

Cocheiros, contae: dezenove!!!

Zutt! bruto-parvo-nada

que Me roubaste tudo:

'té Me roubaste a Vida

e não Me deixaste nada!

nem Me deixaste a Morte!

Zutt! poeira-pingo-microbio

que gemes pequenissimo gemidos gigantes,

gravido de uma dor propheta colossal!

Zutt! bugiganga-celluloide-bagatella!

Zutt! bêsta!

Zutt! bácoro!!

Zutt!

Em toda a parte o teu papel é admirar,

mas (caso inf'liz)

nunca acertas numa admiração feliz,

Lês os jornaes e admiras tudo do principio ao fim

e se por desgraça vem um dia sem jornaes,

tens de ficar em casa nos chinellos

porque nesse dia, felizmente,

Não tens opinião p'ra levares à rua.

mas nos outros dias lá estas a discutir.

É que a natureza é compensadora:

quem não tem dinheiro pr'a ir ao Colyseu

deve ter cá fóra razões pr'a se rir.

Só te oiço dezeres dos outros

a inveja de seres como elles.

Nem ao menos, pobre fadista,

a velleidade de sêres mais bruto?

Até os teus desejos são avaros

como as tuas unhas sujas e ratadas.

Ó meu gordo pelintrão,

agua-morna suja, brôa do outro v'rão!

Os homens são na proporção dos seus desejos

e é por isso que eu tenho a concepção do Infinito...

Não te córa ser grande o teu avô

e tu apenas o seu neto, e tú apenas o seu sperma?

Não t dóe Adão mais que tu?

Não te envergonha o teres antes de ti

outros muito maiores que tu?

jamais eu quereria vir a ser um dia

o que o maior de todos já o tivesse sido.

Eu quero sempre muito mais

e mais ainda p'r'além-demais-Infinito...

Tu não sabes, meu bruto, que nós vivemos tão pouco

que ficamos sempre a meio-caminho do Desejo?

Em toda a parte o bicho se propága,

em toda a parte o nada tem estalagem.

O meu supplicio não é sómente desêres meu patricio

ou o de vêr-te meu semelhante:

tu, mesmo estrangeiro, és bêsta bastante.

Foi assim qu te encontrei na Russia

como vegetas aqui e por toda a parte,

e em todos os officios

e em todas as idades.

Lá supportei-te muito! Lá falavas russo

e eu só sabia o francez.

Mas na França, em Paris — a Grande capital,

apesar de fortificada,

foi assolada por esta especie animal.

E andam p'los cafés como as pessôas

e vestem-se na moda como ellas,

e de tal maneira domesticos

que até vão ás mulheres

e até vão aos domesticos.

Felizmente que na minha patria,

a minha verdadeira mãe, a minha sancta Irlanda,

apenas vivi uns annos d'Infancia,

apenas me acodem longinquamente

as festas ensuoradas do priest da minha aldeia,

apenas resuscitam sumidamente

as asfixias da tysica-mater,

apenas sôam como revoltas

as pistolas do suicidio do meu pae,

apenas sinto infantil

no leito de uma morta

o gelo de umas unhas verdes,

um frio que não é do Norte,

um beijo grande como a vida de um tysico a morrer.

Ó Deus! Tu que m'os levaste é que sabias

o Ódio que eu lhes teria

se não tivessem ficado por alli!

mas antes, mil vezes antes,

aturar os burguezes da My Ireland

que estes d'esta Terra

que parece a patria d'elles!

Ó Horror!

os burguezes de Portugal

teem de peor que os outros

o sêrem portuguezes!

A terra vive desde que um dia

deixou de ser bola de ar

p'ra ser solar de burguezes.

Houve homens de talento, genios e imperadores.

Precisaram-se de dictadores,

que fôram sempre os maiores.

Cançou-se o mundo a estudar

e os sabios morreram velhos

fartos de procurar remedios,

e nunca acharam o remedio de parar.

E inda hoje eu vivo no seculo XX

a vêr desfilar burguezes

trezentas e sessenta e cinco vezes ao anno,

e a saber que um dia

são vinte e quatro de chatice

e cada hora sessenta minutos de tedio

e cada minuto

sessenta segundos de spleen!

Ora bólas para os sabios e pensadores!

Ora bólas p'ra todas as ephocas e todas as idades!

Bólas p'ro'ós homens de todos os tempos,

e pr'a intrujice da Civilização e da Cultura!

Eu invejo-te a ti, ó coisa que não tens olhos de vêr!

Eu queria como tu sentir a belleza ede um almoço pontual

e a f'licidade de um jantar cedinho

co'as bêstas da familia.

Eu queria gostar das revistas e das coisas que não prestam

porque são muitas mais que as bôas

e enche-se o tempo mais!

Eu queria, como tu, sentir o bem-estar

que te dá a bestilaidade!

Eu queria, como tu, viver enganado da vida e da mulher,

e sem o prazer de seres intelligente pessoalmente!

Eu queria, como tu, não saber que os outros não valem nada

p'ra os poder admirar como tu!

Eu queria que a vida fôsse tão divinai

como tu a suppões, como tu a vives!

Eu invejo-te, ó pedaço de cortiça

a boiar á tôna d'agua, á mercê dos ventos

sem nunca saber que fundo que é o Mar!

Olha para ti!

Se te não vês, concentra-te, procura-te!

Encontrarás primeiro o alfinete

que espetastena dobra do casaco,

e depois não percas o sitio,

porque estás decerto ao pé do alfinete.

Espeta-te nelle p'ra não te perderes de novo,

e agora observa-te!

Não te escarneças! Accomoda-te em sentido!

Não te odeies ainda qu'inda agora começaste!´

Enjôa-te no teu nojo, mastodonte!

Indegesta-te na palha d'essa tua civilização!

Desbezunta-te d'essa vermencia!

Destapa a tua decencia, o teu immoral pudor!

Albarda-te em senso! estriba-te em Ser!

Limpa-te do cancro amarelo e pôdre

Do lazarento de sêres burro!

Desatrella-te do cerebro-carroça!

Desata o nó-cego da vista!

Desillustra-te, descultiva-te, despolle-te,

que mais vale ser animal que bêsta!

Deixa antes crescer os córnos que outros adornos da civilização

Queria-te antes anthropohago porque comias os teus:

— talvez o mundo fôsse mundo

e não a retrete que é!

Ahi! excremento do Mal, avergonha-te

no infinitamente pequeno de ti com o teu papagaio:

Elle fala como tu e diz coisas que tu dizes

e se não sabe mais é por tua culpa, meu mandrião!

E tu, se não fossem os teus paes,

davas guinchos, meu saguim!

— Tu és o papagaio de teus paes!

Mas ha mais, muito mais

que a tua ignorancia-myopia te cega.

Empresto-te a minha Intelligencia.

Toma!

Vê agora e não desmaies ainda!

Então eu não tinha razão?

P'ra que me chamavas doido

quando eu m'enjoava de ti?

Ah? já tens mêdo?

Porque te rias da vida

e ias ensuórar as vrilhas nos fauteils das revistas

co'as pernas fogo de vistas

das coristas de petroleo?

orque davas palams aos compéres e actorecos

pelintras e fantoches

antes do palco, no palco e depois do palco?

Ora Diz-Me com franqueza:

Era por elles terem franqueza:

Era por elles terem piada?

Então era por a não terem?

Ah! era pr'a tu teres piada, meu bruto?!

Porque mandaste de castigo os teus filhos p'r'ás Bellas Artes

quando ficaram mal na instrucção primaria?

Porque é que dizes a toda a gente que o teu filho idiota

estuda p'ra poeta?

Porque te casaste com a tua mulher

se dormes mais vezes co'a tua creada?

Porque bateste no teu filho quando a mestra

te contou as indecencias na aula?

Não te lembras das que tu fizeste

com a propia mestra de moral?

Ou queres tu ser decente —

tu, que tens dezenove filhos?

Porque choraste tanto quando te deshonraram a filha?

Porque lhe quiseste matar o amante?

Não achas isso natural? não achas isso interessante?

Porque não choraste tembem pelo amante?...

Deixa! deixa! eu não te quero morto com mêdo de ti-proprio!

Eu quero-te vivo, muito vivo a soffrer!

Não te despetes do alfinete!

Eu abro a janella p'ra não cheirar mal!

Galopa a tua bestialidade

na memoria que eu faço dos teus coices

cavalga o teu insectissismo na tua sella de D. Duarte!

Arreia-te de Bom-Senso um segundo! peço-te de joelhos,

Encabresta-te de Humanidade

e eu passo-te uma zoologia para as tuas mãos

p'ra te inscreveres na divisão dos Mammiferos.

Mas anda primeiro ao Jardim Zoologico!

Vem ver os chimpanzés!

Acorpanzila-te nelles se te ouzas?

Sagra-te de cú-azul a vêr se elles te querem!

Lá porque aprendeste a andar de mãos no ar

não quer dizer que sejas mais chimpanzé que elles!

Larga a cidade masturbadora, febril,

rabo decepado de lagartixa,

labyrintho cego de toupeiras,

raça de ignobeis myopes, tysicos, tarados,

anemicos, cancerosos e arseniados!

Larga a cidade!

Larga a infamia das ruas e dos boulevards,

esse vae-vem cynico de bandidos mudos,

esse mexer esponjoso de carne viva,

ese sêr-lêsma nojento e macabro,

esse S zig-zag de chicote auto-fustigante,

esse ar expirado e espiritista,

esse Inferno de Dante por cantar,

esse ruido de sol prostituido, impotente e velho,

esse silencio pneumonico

de lua enxovalhada sem vir a lavadeira!

Larga a cidade e foge!

Larga a cidade!

Vence as luctas da familia na victoria de a deixar.

Larga a casa, foge d'ella, larga tudo!

Nem te prendas com lagrymas que lagrymas são cadeias!

Larga a casa e verás — vae-se-te o Pesadêlo!

A familia é lastro: deixa-te fóra e vaes ao céu!

mas larga tudo primeiro, ouviste?

Larga tudo!

— Os outros, os sentimentos, os instinctos,

e larga-te a ti tambem, a ti principalmente!

Larga tudo e vae para o campo

e larga o campo tambem, larga tudo!

— Põe-te a nascer outra vez!

Não queiras ter pae nem mãe,

não queiras ter outros nem Intelligencia!

A Intelligencia é o meu cancro:

eu sinto-A na cabeça com falta d'ar!

A Intelligencia é a febre da Humanidade

e ninguem a sabe regular!

e já na Intelligencia a mais: pode parar por aqui!

Depois põe-te a viver sem cabeça,

vê só o que os olhos virem ,

cheira os cheiros da Terra,

come o que a terra dér,

bebe dos rios e dos mares,

— põe-te na Natureza!

Ouve a terra, escuta-A.

A Natureza á vontade só sabe rir e cantar!

Depois põe-te á cóca dos que nascem

e não os deixes nascer.

Vae depois p'la noitedas sombras

e rouba a toda a gente a Intelligencia

e raspa-lhes bem a cabeça por dentro

co'as tuas unhas e cacos de garrafas,

bem raspado, sem deixar nada,

e vae depois depressa muito depressa,

sem que o sol te veja,

deitar tudo no mar onde haja tubarões!

Larga tudo e a ti mesmo!

Mas tu nem vives nem deixas viver os mais,

Crápula do Egoismo, cartola d'espanta-pardaes!

Mas has-de pagar-Me a febre-rodopio

novêllo emaranhado da minha dôr!

mas has-de pagar-Me o Absyntho e a Morfina!

Hei-de ser cigana da tua sina!

Hei-de ser a bruxa do teu remorso!

Hei-de desforra-dôr cantar-te a bue-dicha

em aguas-fortes de Goya

e no cavallo de Troya

e nos poemas de Poe!

Hei-de feiticeira a gallope na vassoira

largar-te os meus lagartos e a Pecônha!

Hei-de vara magica encantar-te arte de ganir!

Hei-de reconstruir em ti a escravatura nêgra!

hei-de despir-te a pelle a pouco e pouco

e depois na carne viva deitar fel,

e depois na carne viva semear vidros,

semear gumes,

lumes,

e tiros

Hei-de gosar em ti as póses diabolicas

dos theatraes venenos tragicos da persa Zoroatro!

Hei-de rasgar-te as vrilhas com forquilhas e croques,

e desfraldar-te nas canelas mirradas

o nêgro pendão dos piratas!

Hei-de corvo marinho beber-te os olhos vêsgos!

hei-de boia do Destino ser em braza

e tu naufrago das galés sem horizontes verdes!

E mais do que isto ainda, muito mais:

Hei-de ser a mulher que tu gostes,

hei-de ser Ella sem te dar attenção!

Ah! que eu sinto claramente que nasci

de uma praga de ciumes.

Eu sou as sete pragas sobre o Nylo

e a Alma dos Borgias a penar!

 Com a data de 14 de Maio de 1915

 


Poeta sensacionista, narciso do Egipto, futurista e tudo

Biografia

Nasceu em São Tomé e Príncipe a 7 de Abril de 1893;
morreu em Lisboa a 15 de Junho de 1970.
Filho do tenente de cavalaria António Lobo de Almada Negreiros, administrador do concelho de S. Tomé e de Elvira Sobral, foi educado no Colégio de Campolide, dos Jesuítas,  no Liceu de Coimbra.
Em 1911 ingressa na Escola Internacional de Lisboa, que tem um ensino mais moderno, e onde lhe proporcionam um espaço que lhe vai servir de oficina. e publica o primeiro desenho n'A Sátira. Em 1912 redige e ilustra integralmente o jornal manuscrito A Paródia, reproduzido a copiógrafo na Escola, expõe no I Salão dos Humoristas Portugueses, e colabora com desenhos para várias publicações.
Em 1913 realiza a primeira exposição individual, apresentando cerca de 90 desenhos na Escola Internacional, e conhece Fernando Pessoa, que escrevera uma crítica à exposição n'A Águia. Continua a colaborar como ilustrador para várias publicações, e em 1914 torna-se director artístico do semanário monárquico Papagaio Real.
No ano seguinte, escreve a novela A Engomadeira, publicada em 1917, onde aplica o interseccionismo teorizado por Fernando Pessoa, abeirando-se do surrealismo. Colabora no primeiro número da revista Orpheu, depreciado por Júlio Dantas, que afirma que não há justificação para o sucesso da revista e para a publicidade feita ao seu redor, afirmando que os autores são pessoas sem juízo. Ainda nesse ano de 1915, Almada realiza o bailado O Sonho da Rosa.
Em 21 de Outubro do mesmo ano estreia-se a peça de Júlio Dantas Soror Mariana. Almada irá reagir com a publicação do Manifesto Anti-Dantas.
O Manifesto causa algum impacto nos meios artísticos. Almada começa a corresponder-se com Sonia Delaunay, refugiada em Portugal com o marido por motivo da Guerra que assola a Europa. Publica o Manifesto da exposição de Amadeo de Souza Cardoso. Em 1917 realiza a conferência Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, e publica a novela K4 O Quadrado Azul.
Em 1919, com o fim da Primeira Guerra Mundial, parte para Paris, onde exerce actividades de sobrevivência, e escreve Histoire du Portugal para coeur, publicada em 1922. Regressa no ano seguinte.
Em 1921 começa a colaboração com António Ferro, que o apresenta quando Almada realiza a conferência A Invenção do Corpo, como "o imaginário na terra dos cegos", e posteriormente o convida para desenhar para a Ilustração Portuguesa. Em 1923 Almada desenhará a capa do livro de Ferro, A Arte de Bem Morrer, continuando a produzir ilustrações para revistas, cartazes para empresas e publicando,  peças,  romances como  A Questão dos Painéis; a história de um acaso de uma importante descoberta e do seu autor (1926).
De 1927 a 1932 vive em Espanha, e em 1934 casa com a pintora Sarah Afonso. Começa a ser solicitado regularmente para a realização de trabalhos de índole oficial, como seja um selo para a emissão comemorativa da 1.ª Exposição Colonial, um cartaz para o álbum Portugal 1934 editado pelo Secretariado da Propaganda Nacional e ilustrações para o programa das Festas da Cidade de Lisboa, e sobretudo começa os estudos para os vitrais a colocar na Igreja de Nossa Senhora de Fátima em Lisboa, que concluirá em 1938. Esta colaboração  com a «Política do Espírito» de António Ferro culmina em 1941, quando o S.P.N. organiza a exposição Almada - Trinta Anos de Desenho, e o convida a participar na 6.ª Exposição de Arte Moderna e na exposição Artistas Portugueses apresentada no Rio de Janeiro, no Brasil e lhe atribui, em 1942, o Prémio Columbano.
De 1943 a 1948 a sua actividade incide na realização dos frescos das Gares Marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, sendo-lhe atribuído o Prémio Domingos Sequeira em 1946.
Regressa à realização de vitrais em 1951, desenhando  os da Igreja do Santo Condestável, Lisboa, e os da Capela de S. Gabriel, em Vendas Novas, e à pintura em 1954, quando pinta o Retrato de Fernando Pessoa.
A sua actividade, no final dos anos 50, incide na decoração de obras de arquitectura, como sejam:
- painéis para o Bloco (Edifício) das Águas Livres e frescos para a Escola Patrício Prazeres (1956);
- decoração das fachadas dos edifícios da Cidade Universitária (1957);
- cartões de tapeçaria para a Exposição de Lausanne, o Tribunal de Contas e o Hotel de Santa Luzia de Viana do Castelo (1958) e o Palácio da Justiça de Aveiro (1962);
Realiza as suas últimas obras em 1969 - o painel Começar no átrio da Fundação Calouste Gulbenkian, começado no ano anterior, e os frescos Verão na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra.
Em 15 de Junho de 1970 morre no Hospital de São Luís dos Franceses, no mesmo quarto em que tinha morrido Fernando Pessoa.