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CAMÕES: O LIRISMO DO DESCONSERTO
Trabalho elaborado para a cadeira de Literatura Portuguesa II da Doutora Maria de Lurdes Cortez
Faculdade de
Letras de Lisboa Maria Paula Adrião Montez, nº. 11216
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Esta esperâça vam tempo
perdido, Fernão Correia de Lacerda (soneto inédito) Tanto de
meu estado me acho incerto
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1. CAMÕES: O LIRISMO DO DESCONCERTO 1.1.UMA LEITURA DO SONETO “TANTO DO MEU ESTADO ME ACHO INCERTO”: A TEMÁTICA DO DESCONCERTO E O LIRISMO COMO JUSTIFICAÇÃO ÚLTIMA O sujeito de enunciação inscreve-se no poema logo desde o início através das formas pronominais meu e me, no sentido de confessar um estado de incerteza pessoal, ao nível do indivíduo. Passa então ao rol de contradições que o seu corpo, alma e espírito reflectem, o que é dado de uma forma paradoxal e dialéctica. De um modo sensacionista,, hiperbolizado, dramatizado, o poeta sente o desconsolo em si, o desconcerto de um estado melancólico, agitado, perturbado ao jeito de um espírito já não só renascentista, luminoso, mas deixando soltar uma voz mais humanamente falível que também o habita. É não desistindo de se auto-reflectir, no sentido de encontrar as mais íntimas contradições do seu ser, que Camões se procura conhecer a si próprio; é no confronto com o bem que idealiza – e para o poeta o Amor é um bem necessário – que o sujeito de enunciação se revela motivado ao desconcerto . A veia lírica é posta a pensar. O lirismo surge abrupto, no último verso da terceira instância. A visão da Senhora poderá estar eventualmente na causa do estado de alma descrito. O sujeito de enunciação revela-se-nos mais do que nunca, fazendo-nos suspeitar se essa súbita revelação não poderá fazer parte do fingimento poético, próprio do lirismo. Mas e o desconcerto, não será um sentimento partilhado? Será provavelmente o sentimento do homem maneirista do século XVI, como o será de todo o bem pensante poeta de todas a épocas, na vida como na literatura. Face a um mundo onde a realidade raramente cumpre os ideais da ordem e do bem renascentistas, o ser descobre-se também interiormente desordenado e busca a ordem que lhe confere o soneto para exprimir o seu lirismo – expressão do eu. Este permite-lhe relativizar tempo e espaço, e relativizar-se a si próprio num tempo-espaço interior. (ver anexos A e B) Este ser poético, capaz dos mais altos voos e para quem o tempo e o espaço se relativizam, não se sente capaz de exprimir por meras palavras banais o seu estado; por isso a sua justificação última, sem razão aparente, será o Amor, a beleza ou tão só a visão momentânea do seu ideal, personificado na Senhora. (anexo C) 1.2. O LIRISMO CAMONIANO: A CANTIGA DE AMOR CORTÊS VISTA À LUZ DE PETRARCA. O SENTIMENTO LÍRICO DE CAMÕES
A
Senhora - afinal será este o motivo do próprio poema,
paradoxalmente. Um soneto que se supõe logo desde o início ser de
desconcerto passa subitamente a encerrar em si toda uma carga de lirismo
própria de Camões. Um lirismo que faz eco das Cantigas de Amor adaptadas da
lírica provençal dito à maniera de Petrarca, num estilo altissonante
capaz de descrever perturbados sentidos para traduzir as contradições de um
estado melancólico e altamente lírico. Este será o original sentimento
lírico camoniano, maneirista por excelência, buscando as palavras certas com
mestria e, por natureza, irremediavelmente enamorado da senhora. Esta, é
também aqui posta num pedestal, na medida em que a sua simples visão tem o
poder de transtornar o equilíbrio ou, pelo menos, de justificar a sua perda.
O final algo inesperado do soneto, o facto de a sua chave nos indicar o mero
encontro com a Senhora como provável factor causador do desconcerto,
revela-se surpreendente e um tanto irónico, principalmente em oposição à
anterior confissão do desconhecimento das causas. Estamos perante a forma
serpentinata: antes o sujeito poético diz não encontrar causas para o
seu desequilíbrio emocional ; agora ele suspeita que essa poderá ser
a causa, mas mais uma vez não dá certezas, num jogo de revelação/ocultação
capaz de deixar em aberto outras possibilidades para o desconcerto. Este jogo poético, de aprumada perícia, apesar do risco do fingimento, não ofusca a percepção nítida do estado de desconcerto e de desencontro do ser poético em eterna contradição e dialéctica. São antes pretexto para uma confissão que não se destina a qualquer um, e por isso se dirigem à Senhora e se traduzem em versos que se inscrevem no tempo, fazendo eco dos estados melancólicos do pós-renascimento. (anexos E, O e P) 2. CAMÕES: UMA ALMA MANEIRISTA NUM ESPÍRITO RENASCENTISTA 2.1. SERIA CAMÕES UM «OUTSIDER»? “For the outsider, the world is not rational, not orderly” Colin Wilson
Em todas as épocas terão
sempre existido espíritos para quem a realidade não se apresenta como algo
linear, ordenado, inquestionável. Quanto mais o ser humano procura conhecer
o mundo que o rodeia, quanto mais se auto-questiona enquanto ser efémero num
mundo em (in)constante mudança, maior a possibilidade de experimentar um
mal-estar que ao longo dos tempos tem assumido diferentes epítetos:
melancolia, mal de vivre, tédio, angústia existencial, e que Colin
Wilson, nos anos 50 do século XX formulou como “the nature of the sickness
of mankind”, nomeando de outsider todo o homem que está
interessado em saber como deve viver, em vez de aceitar simplesmente
a vida sem a questionar. 2.2. A MELANCOLIA CAMONIANA Acerca da melancolia e, particularmente, da melancolia camoniana, opta-se por remeter este estudo para o capítulo As Canções da Melancolia: Aspectos do Maneirismo de Camões, da obra Camões: Labirintos e Fascínios, de Aguiar e Silva (ver bibliografia). Será, com efeito, nas Canções, que a melancolia camoniana mais se manifesta. Este traço marcante dos artistas de seiscentos, que se converte numa artística vontade de estilo, e que resulta de estados de melancolia vivenciais, assemelhando-se ao mal de vivre, ou chamado tédio finissecular, dos artistas dos finais do século XIX. As características da melancolia e do ser melancólico, recorrem um pouco por toda a grande literatura portadora de modernidade e pelo pensamento do século XX. No soneto em análise, a melancolia camoniana não atinge as profundidades alcançada nas Canções, mas o estado de turbação interior e de incerteza confessado, poderá eventualmente ser reconhecido como um estado melancólico, um estado de paixão e de desconcerto que, através do lirismo se converte em estilo. (anexo O) 2.2.1. A ORDEM FORMAL E O UNIVERSO CAÓTICO DO SUJEITO LÍRICO “what can be said to caracterize the outsider is a sense of strangeness, of unreality” Colin Wilson
Relativamente
ao soneto que serve de motivo a este trabalho, o sentido de estranheza
apresenta-se logo enunciado nas duas primeiras estrofes – condição,
exempla. Nelas, o sujeito poético revela o seu estado de incerteza,
o qual é encenado num lirismo que se manifesta em estados físicos e
emocionais antitéticos e simultâneos. Este estado eminentemente individual
de paixão, virá a assumir ainda na primeira estrofe um carácter mais
alargado, extravasando para fora do mero universo do eu, no verso
o mundo todo abarco e nada aperto. 2.3. A POESIA COMO ÂNSIA DE PERMANÊNCIA O desejo máximo do «outsider» é deixar de ser «outsider» Colin Wilson
Poder-se-á
talvez concluir que Camões foi e continua a ser um «outsider», quer pela
forma como subscreveu o tema do desconcerto do mundo, quer pela forma como
submeteu o sentido da melancolia e o seu mundo interior a uma análise
introspectiva que não se deteve e extravasou em poesia, procurando
desenfreadamente a ordem interior capaz de melhor exprimir o sentimento
poético – o lirismo camoniano. A razão procura um motivo e este surge,
surpreendente, num elogio ao poder caótico da Senhora. A chave do
soneto para ela aponta; contudo, ainda não como certeza, mas como
suspeita. A perfeição orgânica do soneto cumpre-se. A alma fortemente
sensível concretiza-se numa ordem formal que se traduz no monumento poético
com que voltamos a travar a tal luta corpo a corpo com que nos
deparamos. Ao universo caótico do sujeito lírico – o qual se exprime
essencialmente na temática do desconcerto e na temática amorosa, Camões
contrapõe a ordem formal que lhe é conferida, neste caso, pelo soneto.
(anexos H e I). 3. MANEIRISMO: O PRIMEIRO DOS ISMOS 3.1. O ESTILO MANEIRISTA
O
Maneirismo surge como o primeiro gesto de contraposição de um novo estilo ao
classicismo renascentista. Na pintura terá resultado de uma imitação dos
mestres renascentistas que os novos pintores experimentaram. Estes artistas,
homens também eles de génio, traziam em si, mais do que uma mera capacidade
imitativa, uma vontade de estilo. (anexo J) [Sobre o Estilo Maneirista consulte-se o Cap. VI, “Estilo e Formas da Lírica Maneirista” in Aguiar e Silva, Vitor Manuel de, Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, Dissertação de Doutoramento, Centro de Estudos Românicos, Coimbra, 1971] 3.2. O MANEIRISMO COMO PONTE ENTRE O RENASCIMENTO E O BARROCO
O Maneirismo é por vezes
entendido como um estilo pós-renascentista, ou pré-barroco. Isto porque
efectivamente se trata de um estilo historicamente situável entre estas duas
épocas literárias. Consideramos, contudo, que o que de mais empolgante se
pode extrair deste questionar é a procura dos rumores que esta aproximação
terá causado: o Maneirismo ainda tem de renascentista o que já tem de
barroco; não sendo situável em nenhum dos dois, mantém uma identidade e uma
especificidade própria, as quais reflectem o seu carácter inovador quer em
relação ao que houvera sido o renascimento, quer em relação ao que estava
para vir a ser o barroco. O que leva a reafirmar que o Maneirismo é
essencialmente um estilo inovador que realiza uma pré-síntese do clássico e
do barroco. O uso de uma linguagem rebuscada e conceituosa, recheada de metáforas, antíteses, oxímoros e elaborados paradoxos, percorrem circuitos serpentinatos, onde se exprimem il furore, il niente e il mirabile, elementos que, sendo portadores de um barroquismo exasperado, serão mais tarde retomados e assaz desenvolvidos pelo pleno barroco. (anexo M) 3.3. MANEIRISMO CAMONIANO E MODERNIDADE
Observámos
como o Maneirismo é o estilo tradutor da mundividência do artista de
seiscentos. Sendo um estilo uno, na medida em que traduz mundividências,
temáticas e aspectos formais comuns a vários artistas, ele é essencialmente
um estilo individual, ou seja, um somatório de estilos individuais que
exprimem o espírito de uma época. Como tal, importa observar como esse
estilo se individualiza em cada artista pela sua própria vontade de estilo.
Importa falar de um estilo camoniano propriamente dito, construído sob uma
vivência única ou, mais especificamente relacionado com o objecto deste
estudo, sobre o lirismo camoniano.
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Anexo A
Se, para os maneiristas, tudo no mundo é teia de enganos e ilusões, o amor
terreno, profano, o amor entre homem e mulher, representa para muitos deles
o engano por excelência, o engodo que impele os homens a confundirem
perigosamente a verdade e o erro, buscando contentamentos falazes que
afastam da salvação eterna. Nalguns poetas, como Camões e Soropita, as
queixas contra os enganos do amor situam-se num plano preponderantemente
psicológico, dentro da tradição cortês e petrarquista do amor, sendo
considerados tais enganos sobretudo como fonte de sofrimento e tristeza para
o poeta. Anexo B
Um
dos sintoma que mais impressionantemente revelam a crise espiritual,
religiosa e ética, dos maneiristas, é sem dúvida a melancolia exasperada, a
instabilidade afectiva, o comportamento de homens estranhos, lunáticos e
doentios, que caracterizam muitos deles e que ganham expressão artística, de
diversos modos, nas suas obras.(...) Como observa Arnol Hauser, são
fenómenos a sublinhar, no período maneirista, o número de intelectuais
neuróticos, a difusão do cepticismo e o aparecimento da melancolia como uma
doença da moda. O gosto pelo monstruoso, pelo grotesco e pelo demoníaco
(...) traduz essa atmosfera de crise e de angústia vital em que se criou e
desenvolveu o maneirismo, ao mesmo tempo que exprime inequivocamente o seu
anti-classicismo e a importância da reviviscência de elementos medievais –
ou goticizantes, para usar a expressão de Georg Weise – que nele se
verifica. Anexo C Um dos problemas histórico-literários mais apaixonantes é o da emergência e longa perdurabilidade desta lírica-trovadoresca-petrarquista-maneirista que equivale a uma religião literariamente muito ritualizada do amor humano, da Amada, com a sua glória e o seu inferno, com a sua ininteligibilidade radical evidenciada pelos paradoxos, ou extremos, quer dos atributos da Amada objecto de adoração, quer da experiência da sua subjectividade do amador, convertendo a Amada no mesmo transcendente impossível (outra palavra-chave destes líricos), no mesmo ponto de coincidência dos contrários que, para os místicos é o próprio sinal patente da divindade. Como pôde ser esta heresia literária tolerada sob o signo de Trento? Eis um tópico de reflexão que faz sacudir logo outro: não seria esta lírica do amor petrarquista afinal teológica, na medida em que a Amada não se individualiza mas se ergue a mero símbolo, ao cabo de uma dialéctica e de uma retórica facilmente (e tantas vezes) transferidas para a divindade ortodoxa? (p. 15) O caso é que atingimos, neste trânsito para o Barroco, a fase em que tal complexo rito literário de topos e de tropos já revela os limites da sua sinceridade e até mesmo talvez os das suas possibilidades de combinatória formal. (Acerca de Soropita – Fernão Rodrigues Lobo – editor das Rimas camonianas in Saraiva, António José e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, 17ª. Ed. corrigida e actualizada, Porto Editora, Porto, s.d. in História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVI – A Geração de Camões. Os Líricos., Fundação Calouste Gulbenkian, Lx., 2001, p. 15) Anexo D
(...)
Georg Weise chamou a atenção para a importância de elementos medievais,
representativos do gótico tardio, que estariam na origem do maneirismo.
Dentro dessa orientação metodológica, Weise procurou caracterizar o
maneirismo literário com base em elementos estilístico-formais que ocorrem
na lírica italiana, francesa, inglesa e espanhola – e portuguesa, podemos
nós acrescentar (...). Esses elementos formais, que Weise apresenta como
tipicamente maneiristas, são constituídos pelas antíteses abstractas e pelas
metáforas conceituosas que, remontando à poesia trovadoresca provençal, e ao
dolce stil nuovo,
aparecem como um elemento estilisticamente importante do Canzoniere
de Petrarca e, sobretudo, do petrarquismo dos séculos XV e XVI. (...) Ocorre
na lírica um concomitante revigoramento do petrarquismo, (...) que não só
(difunde) uma imagem estilizada e espiritualizada da mulher amada, mas
também uma linguagem poética preciosista, urdida de antíteses e de metáforas
conceituosas, num jogo refinado e cerebral de subtilezas psicológicas e
formais. (pp. 472-474) Anexo E
(...) Anexo F O «outsider» é o homem que tem a noção das fundações instáveis sobre que a vida humana assenta e sente que o caos e a anarquia repousam mais fundo do que a ordem em que a maior parte dos outros homens acredita. O desejo máximo do «outsider» é deixar de ser «outsider» mas não pode deixar de o ser para se transformar num simples burguês. O problema é: como continuar para a frente? A solução do amor? Confiança num único ser humano, construção de pequenos mundos fechados, mundos a dois. Sempre haverá assim, uma razão para lutar, através de um ser por quem lutar. O «outsider» não o é por capricho. Ele é apenas mais sensitivo do que o tipo de homem sanguíneo e “naturalmente saudável”. Colin Wilson dá para o «outsider», como única possível, a solução religiosa. Porque o problema do «outsider» é um problema de liberdade, não no sentido político do termo, mas num sentido de muito maior profundidade espiritual: “the fundamental notion of religion is freedom, and it is usually to some sort of religious solution that the outsider turns, when he finds a solution at all.” A solução é pois de libertação, só conseguida pela dissolução do eu em algo mais vasto. É preciso criar uma religião humana, qualquer coisa suficientemente poderosa para constituir uma solução sem sair fora dos limites humanos. Então a solução parece encontrar-se numa disciplina de aperfeiçoamento por sublimação (Freud), se é que a sublimação é possível. Trata-se de uma unificação da dualidade por meio de uma evolução unilateral em que o gorila sobe até ao homem enquanto este fica quieto. Cada homem tem de empreender dentro de si o trabalho de toda a História. Por isso cada homem está só e não pode aproveitar, como feita e dada, a experiência anterior. Cada homem tem de criar de novo o mundo. “What can be said to characterize the outsider is a sense of stangeness, of unreality” “For the outsider, the world is not rational, not orderly” “Se uma solução existe deve ser provocada, não pelo raciocínio, mas no exame da experiência”, é a conclusão de Sartre na Náusea. “Freedom is release from unreality”, é a conclusão de Mersault no Estrangeiro de Camus. Liberdade não é simplesmente ter a permissão de se fazer o que se quere. É a intensidade de querer e aparece em quaisquer circunstâncias que limitem o homem e lhe despertem o desejo de mais vida.
A liberdade está em
encontrar uma linha de acção que dê expressão à parte de nós que não se
contenta com o trivial. É esta a mensagem de Hemingway. Sartre resolve o problema com a filosofia do engagement. O “engagement” no amor? Em qualquer coisa, visto nada levar a nada. Afinal, o que se procura é afastar a sensação de irrealidade. Desenvolvimento de uma ética de renúncia e disciplina! Mas sem ser religiosa. Como? Como ganhar o controle? “There is na appetite for progress in all outsiders”. A conclusão de Demian, de Herman Hesse é que o caos deve ser enfrentado. A ordem real deve ser precedida de uma descida ao caos. É neste sentido que cada homem está sozinho para construir de novo, na medida em que a experiência dos outros não o pode ajudar. Cada homem, no espaço de uma vida, tem que destruir tudo o que lhe é dado e começar de novo, fazendo um novo arranjo com as peças quebradas do puzzle: “A vida de cada um é uma estrada para si mesmo” Voltando à sua velha noção de ordem Sinclair, no Demian de Hesse, apenas virou as costas ao caos. O caos continua a existir. Não se pode escapar ao caos pela recusa de olhar para ele. Não basta aceitar um conceito de ordem e viver para ele. Isso é cobardia. E tal cobardia não pode resultar em liberdade. O caos deve ser encarado. A verdadeira ordem deve ser precedida de uma descida ao caos. Em tempos teológicos a queda era necessária. O homem tinha que comer o fruto do bem e do mal. No Lobo das Estepes de Hesse “o outsider é um homem dividido; o seu máximo desejo é unificar-se”. O bruto e o civilizado vivem no mesmo homem. Normalmente estão em guerra. Raramente, na combinação dos dois, há a paz, uma harmonia. É preciso cultivar as duas naturezas opostas: quando conseguir o segredo de reconciliar permanentemente as duas, o Lobo das Estepes sabe que viverá num grau de intensidade desconhecido do burguês. Quando o «outsider» fica conscio da sua força, está unificado e feliz. Muitos «outsiders» unificam-se, realizam-se como poetas ou santos. Outros ficam tragicamente divididos e improdutivos. Mas mesmo estes abastecem a sociedade de uma energia espiritual. São os dínamos espirituais da sociedade. O caminho do «outsider» para a salvação está implícito: os seus momentos de visão interior do seu caminho devem ser agarrados com força. Nesses momentos ele deve formular leis que lhe permitam movimentar-se em direcção ao seu objectivo apesar de o perder de vista. Estas leis não se aplicam só a ele mas a todos os homens cujo objectivo a atingir é idêntico ao do «outsider», mesmo que eles o não saibam. O homem que está interessado em saber como deve viver, em vez de aceitar simplesmente a vida sem a questionar, é, automaticamente, um «outsider». É o meio exterior que leva à devastação, o meio exterior mais agudamente visto ou sentido, ou compreendido pelo «outsider», cujo limiar de sensibilidade é maior do que o do homem vulgar? É qualquer coisa de concreto? Vem de fora para dentro ou de dentro para fora? Na Náusea de Sartre vem de fora. E em Buda que viu o velho, o doente e o morto e acordou para ser «outsider». A base necessária de qualquer religião é a crença em que a liberdade pode ser atingida. O problema do «outsider» é religioso. «Outsider» e liberdade andam sempre ligados. Um homem torna-se «outsider» quando reconhece que não é livre. O «outsider» procura uma percepção da realidade. Mas o que é a realidade? (Uma leitura/tradução feita a partir de excertos da obra de Colin Wilson, The Outsider –An Inquirity into the nature of the sickness of mankind in the mid-twentieth century, London, Victor Gollancz Ltd, 1957, 11ª. Ed. (1ª. Ed.: 1956), pp. 288.) Anexo G Da tradição, (Camões), recolhe os elementos que lhe permitem a criação de um universo pessoal e não hesita em os adaptar à sua intenção expressiva, conformando-os através de modelizações sucessivas. (p. 17) A poesia surge no universo lírico de Camões como força ordenadora da experiência pessoal, em que avultam contradições que só o carácter simbólico e assistemático do conhecimento lírico permite conciliar. Camões não opera de forma nítida a separação entre a atitude poética e a filosófica , entre o conhecimento mítico, recuperado pela Poesia, e o conhecimento voluntariamente analítico; mas é já muito clara na sua Lírica a ideia de que a emoção individual não proporciona explicação suficiente para a compreensão do universo e que a idealização mimética presente nos modelos procurados e imitados (e culturalmente assimilados) não pode acalmar a inquietação espiritual. (p. 18) (...)no meio de um desespero humanamente compreensível, o Poeta se abandona aos desígnios da Providência; mas é numa entrega ditada mais pela fé do que pela reflexão, e assim a resignação demonstrada não o impede de continuar a reflectir, a procurar compreender a esfera terrena em que se move. Em consequência, embora religiosa e filosoficamente enquadrados, os problemas são interiorizados e liricamente valorados e, portanto, ajuizados a nível de significação individual e psicológica. O homem apenas consegue perceber que as leis do mundo e da natureza são falíveis, sendo a harmonia aparente pura desilusão. No bem dissimula-se o gérmen do mal, a felicidade integra motivos da futura tristeza, sem que sejam evidentes as causas do desequilíbrio e da destruição da perfeição, que afinal nem tinha existência real, antes escondia a tensão de um mundo regido numa instável discordia concordans. A angústia instala-se então de uma forma particularmente dolorosa para o poeta que, solitário, rememora passos da sua vida em elegias e canções ou endereça as cartas líricas em tercetos, ou ainda, mais inesperadamente, atormenta os pastores que se não deixam iludir pela calma tranquila da Arcádia, sentindo com particular veemência como lhes é estranho o ambiente idílico.(p. 19) Mas a insuficiência da experiência pessoal manifesta-se também porque o próprio sujeito lucidamente se apercebe de não se conseguir explicar a si próprio.(...)Mais ainda, nos poemas maiores das Rimas, seja pela constante variação do ângulo de análise, seja pelo tratamento estilístico das situações, a contradição torna-se independente da perspectiva do sujeito, impondo-se como inerente às próprias coisas (e ao Amor em primeiro lugar). Por conseguinte, revelam-se vãs as tentativas, características da sensibilidade pessoal e também da época maneirista vivida pelo autor, de definir os objectos e os estados sentimentais, de procurar a justificação que ligaria o presente e o passado.(...) Levado então pelo impulso muito humano de objectivar o fulcro do mal, transferirá para factores transcendentes as causas da sua infelicidade, tornando-a, portanto, insuperável. Assim, aponta como culpados o destino, a fortuna e, principalmente, o Amor, que, de uma forma cruel e trágica, o fazem conhecer o bem ambicionado mas dele o privam, deixando-lhe apenas a fantasia, que opera entre a lembrança e pensamentos de esperança, tão inelutáveis como irreais, e a lucidez, que lhe não permite a ilusão.O bem não é forçosamente numa bem conhecido, apesar de ser sentido como merecido. Nas canções, sobretudo naquelas em que se desenha um poeta melancólico, adivinha-se por vezes como bem sonhado mas nunca atingido no passado, como ilusão mal fundamentada, projectada num futuro que o poeta imagina, apesar de o saber irrealizável.(...) Ou seja, o bem é apenas o sonho de quem, arrastado por forças que lhe são superiores, não consegue perder a esperança, apesar de desejar o esquecimento. E este carácter lúcido, ao mesmo tempo, irracional e invencível da ilusão, mantém uma permanente tensão lírica, que ora se colora de uma melancolia elegíaca, ora dá origem ao desespero. (pp. 19-20)
A luta trava-se então contra o tempo. Mais do que a nostalgia
do passado, a saudade representa a rejeição do presente, numa atitude
consciente de fechamento sobre um mundo de fantasia individual , que domina
o Poeta enquanto sujeito lírico e se estende às personagens pastoris. Na
compreensão deste processo, tornam-se fundamentais as reflexões mais
desenvolvidas nas éclogas, em que se conclui ser o Tempo produto da vivência
individual e ter, portanto, um significado puramente psicológico.(p.
20) (...)
o espaço é, também ele, prontamente interiorizado e per5de existência
objectiva. Neste processo, a memória torna-se fonte de inesgotável
sofrimento, sobretudo porque, de forma incontrolável, se alia à fantasia,
enquanto, simultaneamente, o poeta mantém uma extraordinária lucidez na
consideração objectiva da sua situação de alienação e da fragilidade do
indivíduo perante o poder do Destino e do Amor.
(p. 20) (...) Camões confirma que o impulso amoroso, exaltado nos seus poemas como princípio de ordem e de elevação espiritual, dita a destruição do ser individualizado; (...) é constante a oscilação entre a consideração do caso individual e a tentativa, vã, de o compreender segundo as leis que deveriam poder explicá-lo. (pp. 20-21) A sensibilidade pessoal e a reflexão sobre a sua própria experiência e desilusões não anulam o valor que Camões atribui à herança cultural transmitida por gerações que proclamaram a crença renascentista no homem e na sua capacidade de realização. O que torna agónico o dissídio camoniano não é uma atitude de abandono e desilusão, de descrença na idealização de um mundo em que acreditou; é antes o conflito que se gera entre imagens interiorizadas e antagónicas, mas igualmente válidas.(p. 21) Não é possível reduzir a complexidade à justaposição de imagens simples e monolíticas, como sejam a de um Camões renascentista alternando com um Camões maneirista, de um Camões espiritual que encontraria a sua complementaridade num Camões sensualista, do Camões angustiado das canções oposto ao Camões luminoso das odes. Como qualquer artista, Camões é feito das contradições humanas que não se adaptam a simplificações esquemáticas, e, compreendida na sua complexidade pessoal e literária, é uma imagem una e coesa a que se constrói na diversidade dos géneros maiores da sua poesia lírica. (p. 21) Maria do Céu Fraga, “Os géneros maiores na poesia lírica de Camões” in “Conclusão” , Dissertação de doutoramento. Univ. dos Açores, 1997 in História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI, Luís de Camões. Lírica. Estudos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lx., 2001 Anexo H
Da
redondilha para o soneto é um grande salto: há um maior fôlego de capacidade
combinatória, maior flexibilidade de sintaxe e vocabulário, por isso maior
variedade, mesmo quando limitada por certos hábitos de expressão escrita
clássica, de que, por exemplo Pessanha nos dá consciência, quando evita os
ritmos previsíveis dos sonetos de Petrarca. Temos quase sempre a corrida
para a chave de ouro no terceto final, com um primeiro quarteto a pôr uma
condição geral, que o segundo quarteto em geral reexpõe como que
exemplificativamente, e de que o primeiro terceto impõe a fórmula perentória
decisiva, donde o fecho feliz ressalta um pouco (ou faz-se de conta que)
inesperado. Há possibilidades de surpresa, que fazem sentir que há um certo
viço ainda a animar as convenções, e que os epígonos esgotarão, com maior ou
menor consciência de o fazerem. (Óscar Lopes, “Camões – Um Pacto de Leitura” in Oceanos, nº. 23, Julho/Setembro, 1995, pp. 9-12 [in História e Antologia da Literatura Portuguesa Séc. XVI, Fundação Calouste Gulbenkian, Lx., 2001] Anexo I O soneto impõe-se como a forma poética mais frequentemente cultivada pelos maneiristas, tendo conservado esta primazia no período barroco. De acordo com o modelo petrarquista, o soneto foi predominantemente utilizado para exprimir uma temática amorosa.(...) (p. 386) Para exprimir mais vigorosamente os contrastes e as contradições do amor, aparecem algumas composições – em geral sonetos – quase inteiramente constituídas por uma acumulação de antíteses, paradoxos e oxímoros, segundo o modelo apresentado já por Petrarca em alguns dos seus sonetos. É o caso dos sonetos camonianos Amor é um fogo que arde sem se ver e Tanto de meu estado me acho incerto (...) (pp. 332-3) (...) Os versos bimembres encerram uma antítese ou oposições – agora desvario, agora acerto (...) importa chamar a atenção para o facto de os poetas maneiristas utilizarem com alguma frequência a bimembração no fecho dos sonetos, técnica muito explorada depois pelos autores barrocos(...). (pp.356-7) Anexo J
A
fórmula do equilíbrio liberto de forças contrárias apresentadas pela arte
clássica, não é já adequada; e, no entanto, ainda se adere a ela – algumas
vezes mesmo mais lealmente, mais ansiosamente, e mais desesperadamente do
que acontecia no sistema de relações em que a mesma fórmula era considerada
como um dado. (...) Os críticos de arte do século XVII (...) não se
aperceberam de que a imitação e, simultaneamente, a distorção dos modelos
clássicos eram condicionadas, não pela falta de compreensão, mas por um
espírito novo maneirista, claramente não-clássico. Hauser, Arnold, História Social da Arte e da Cultura, Vol. 3, Vega Estante Editora, s.l., s.d., pp. 133-135 Anexo L
Estilo:
“Um estilo
artístico é o conjunto de traços iconográficos, técnicos, compositivos...
que dão identidade e carácter à expressão artística e permitem, assim
identificar as obras de uma época histórica, de uma escola ou de uma
individualidade (estilo clássico, românico, gótico, romântico,
impressionista, etc). Anexo M
(...)
Alguns caracteres importantes do estilo maneirista, tanto nas artes
plásticas como na literatura, (...) revelam uma determinada mundividência.
Assim, por exemplo, o antinaturalismo, a inquietude espiritual, a destruição
do equilíbrio e da harmonia formais. Tais características (...) têm que ser
interpretadas à luz de um fenómeno de cultura e civilização que transcende o
âmbito das manifestações artísticas, pois que concerne a
forma mentis,
as concepções metafísicas e antropológicas, o estilo de vida do homem
europeu, num determinado momento da sua história. Cremos que a mais vultosa
e significativa conquista de alguns estudos sobre o maneirismo, como os de
Arnold Hauser e Eugenio Battisti, consiste precisamente na integração do
maneirismo numa problemática ideológica e cultural que rompe, em pontos
capitais, com as normas, os padrões e os valores tipicamente renascentistas. Anexo N O mais impressionante ponto é que podemos falar de «harmonia» quando esta poesia (quando não é apenas graciosa brincadeira) exprime uma terrível angústia e amargura, um sentido do mundo estar fora da ordem e uma profunda convicção de destino pessoal inescapável, e do homem e do poeta como um paradigma do sofrimento e da frustração humanas, levando portanto as contradições do Maneirismo a uma comovente e altamente impressionante expressão.(...) (p. 13) Camões é, na mais existencial maneira um poeta filosófico, profundamente preocupado com encontrar um sentido para um mundo que parecia, no ocaso da Renascença, mais e mais sem sentido – um sentido que ele atinge estruturalmente impondo a ordem e o equilíbrio dos seus poemas à desordem deste mundo. (pp. 13-14) (...)amor, para ele, é uma coisa que transcende tudo: vida e literatura, experiência e religião, platonismo, cristianismo, petrarquismo, para se tornar a vera essência da vida humana e do universo, com todas as angústias e frustrações, todas as ânsias e alegrias. (p. 14) Jorge de Sena (1975), “Camões: O poeta lírico” in Trinta Anos de Camões: 1948-1978 (Estudos Camonianos e Correlatos). Lisboa, Edições 70, 1980, pp. 287-294. Anexo O
Em que consiste o
amor-paixão ou amor cortês? Fundamentalmente no amor do amor: «O que eles
amam é o amor, é o próprio facto de amar. E agem como se tivessem
compreendido que tudo o que se opõe ao amor o garante e consagra em seus
corações, para o exaltar até ao infinito no instante do obstáculo absoluto,
que é a morte. [...] Têm necessidade um do outro para arderem em paixão, mas
não um do outro tal como cada um é; e não da presença do outro, mas bem mais
da sua ausência!» Anexo P A cousa amada é assim (re) constituída na memória e pela memória e por isso esta poesia da melancolia se apresenta como a história de um tempo perdido, como a história de uma perda, de uma dissipação e de uma ausência. Só uma leitura ingénua ou estreitamente biografista pode interpretar essa história como a narrativa autobiográfica de eventos efectivamente acontecidos. Essa história está inscrita no modelo da lírica europeia desde o século XV até ao século XVII – o modelo petrarquiano e petrarquista – e o seu significado poético, antropológico e metafísico, tem de ser construído à luz do neoplatonismo e do petrarquismo. A poesia de Camões, como a poesia de Petrarca ou a poesia de Herrera, é a construção poética de uma autobiografia na tessitura da qual ficção e realidade, memória literária e memória vivencial, fantasma da imaginação e acontecimentos verídicos se mesclam e fundem. [...] A cousa amada, nos melancólicos, pode ser um fantasma erótico, uma imagem interior obsidientemente feita, desfeita e refeita pelo spiritus phantasticus, pela cogitação sem repouso do amante que dá corpo ao incorpóreo e torna incorpóreo o corpóreo. (Aguiar e Silva, Vítor Manuel de, Camões: Labirintos e Fascínios, Ed. Cotovia, Lx, 1994, pp. 223-4)
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BIBLIOGRAFIA
Aguiar e Silva, Vítor Manuel
de, Camões: Labirintos e Fascínios, Edições Cotovia, Lx., 1994 , Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, Dissertação de Doutoramento, Centro de Estudos Românicos, Coimbra, 1971 , Teoria da Literatura, Livª. Almedina, Coimbra, 8ª. Ed, 1992 Fraga, Maria do Céu, “Os géneros maiores na poesia lírica de Camões” in “Conclusão” , Dissertação de doutoramento. Univ. dos Açores, 1997 [in História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVI – Estudos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lx., 2001] Hauser, Arnold, História Social da Arte e da Cultura, Vol. 3, Vega Estante Editora, s.l., s.d. Leal de Matos, Maria Vitalina, Introdução à Poesia de Luís de Camões, Biblioteca Breve nº. 50, ICALP, Lx., 1992 Óscar Lopes, “Camões – Um Pacto de Leitura” in Oceanos, nº. 23, Julho/Setembro, 1995 [in História e Antologia da Literatura Portuguesa Séc. XVI, Fundação Calouste Gulbenkian, Lx., 2001] Saraiva, António José e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, 17ª. Ed. corrigida e actualizada, Porto Editora, Porto Sena, Jorge de (1975), “Camões: O poeta lírico” in Trinta Anos de Camões: 1948-1978 (Estudos Camonianos e Correlatos). Lisboa, Edições 70, 1980 Wilson, Colin, The Outsider – An Inquirity into the nature of the sickness of mankind in the mid-twentieth century, London, Victor Gollancz Ltd, 1957, 11ª. Ed. (1ª. Ed.: 1956) Como Reconhecer Estilos, Manuais PET, Editora Plátano, Lx., 1999 ANTOLOGIASHistória e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVI – A Geração de Camões. Os Líricos., Fundação Calouste Gulbenkian, Lx., 2001 História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVI – Luís de Camões. Lírica – Antologia-., Fundação Calouste Gulbenkian, Lx. 2001 |